quarta-feira, 23 de julho de 2014

Uma licença para Rubem Alves

Preciso pedir licença para publicar um texto que não é meu. Me deparei com ele, apresentado por Rivae, um amigo muito querido e também muito culto, no que se refere a música e poesia brasileiras. 

Espero que, quem leia, possa se deleitar da mesma forma que eu, lendo aos poucos, sorvendo cada um dos parágrafos com sua peculiar graça e incomodante verdade. 

Beijos para quem é de abraços.
Abraços para quem é de beijos. 

Em tempo: o texto é de autoria de Rubem Alves e foi extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantinha, antes de sua morte, coluna bissemanal.

A PIPOCA

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".

quarta-feira, 16 de julho de 2014

11º Aniversário

Feliz Aniversário, Diario de Bordo

Há 11 anos, comecei a escrever como forma de registrar meus dias, meus pensamentos, minha rotina. Descobri uma forma maravilhosa de terapia, na qual podia desenvolver pensamentos mais profundamente, mais livremente. Resolvi contar casos, histórias, contos, loucuras. 

Descobri que havia outros loucos como eu, que gostavam de se expressar pelas palavras e comecei a freqüentar a blogosfera. Atrás de textos que me fascinassem, encontrei pessoas que me fascinam. Amigos virtuais que trocam idéias e elucubrações. 

É a esses amigos que, novamente, dedico esse post. Que venham novos. Que venham mais. A blogosfera é nossa. A festa também. 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Sobre "Questão de Tempo"

"Questão de Tempo" de Richard Curtis é uma ode à segunda chance. Mas também um convite à reflexão da simplicidade da vida e de como pequenas decisões podem torná-la mais doce, mais agradável, mais gostosa. De uma forma completamente deliciosa, o filme navega pela vida de Tim (Domhnall Gleeson), um ruivo inglês que pode voltar no tempo. A construção da relação dele com seu par romântico (Rachel McAdams, de Mean Girls) e a forma como ele se relaciona com seu próprio pai (e as decisões tomadas nesse processo) são de uma inesperada fluidez e de um deleite mágico com gosto de final feliz. Ponto adicional para How Long Will I Love You, de Jon Boden, uma escolha até óbvia, mas perfeita para trilha sonora. 

About Time, 2013, EUA, 123 min

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Minha Mãe me Tirou do Armário

Estava chegando na academia, um dia, e recebi uma ligação da minha mãe. Bem direta, ela disse que precisava conversar comigo e perguntou se eu teria tempo. 

Daniela Mercury acabara de sair do armário com sua Malu Verçosa. Além da avalanche de revistas, com fotos de troca de aliança, felicidade conjugal, casamento e toda sorte de exposição na mídia, ainda me deparei com artigos e reportagens da bancada evangélica e dos moralistas de plantão, falando sobre a não-naturalidade de um amor homossexual. 

Eu, do lado de cá, aproveitei as mais variadas capas de revistas sobre o assunto e postei mensagens em redes sociais, defendendo meu direito de amar quem eu quisesse, que o meu tipo de amor por outro homem indifere do amor de um homem por uma mulher, que o respeito começa quando as diferenças são aceitas sem questionamentos. Todas as publicações devidamente acompanhadas com a hashtag #simsougay. 

Ao mesmo tempo, a empresa na qual trabalho passou por uma reestruturação e, com ela, tiveram que retroceder uma promoção que eu havia recebido dois anos antes. 

Essa ligação da minha mãe marcou minha vida porque foi o primeiro caso, por mim conhecido, de expulsão do armário. 

Logo depois que eu disse que teria, sim, um tempo, ela já disparou um texto que, sem dúvida, foi ensaiado exaustivamente até aquele momento.  

Ela disse mais ou menos isso: "filho, eu e seu pai estamos aqui e a gente sabe que você" - pausa dramática - "que vc é gay. A gente sabe que vc tem um relacionamento com Vapes e a gente te respeita por isso." - até então, nunca havíamos falado sobre minha sexualidade. "Mas eu acho que essa sua exposição no Facebook está sendo negativa para a sua imagem na empresa. Resolvemos ligar porque achamos que foi por isso que vc perdeu seu cargo e a gente não queria que isso acontecesse". 

Num primeiro momento, tive a certeza que meu coração parou por alguns segundos. Depois, ele voltou mais rápido que uma batucada do Carlinhos Brown ou uma bateria de escola de samba do Rio de Janeiro.  

Expliquei que todos os medos dela, nesse sentido, eram sem fundamento. Até porque, trabalhando com atendimento ao público, a empresa teria preferência por funcionários gays que se preocupam muito mais com requinte, bom gosto é bom atendimento. Aproveitei para afirmar algumas coisas que beiraram a grosseria, mas senti que era necessário.

Disse que era homem e que permaneceria assim. Que não tinha vontade alguma de ser mulher, de me vestir de mulher, usar maquiagem ou usar salto alto. Que o fato de eu ter um homem como companheiro para a vida apenas significava que eu não tinha uma mulher como companheira, mas que tudo o mais era exatamente igual: os problemas, as dificuldades, o companheirismo, a cortesia, o amor.

Achei que foi proveitoso. Agradeci a ela por ter a coragem que eu jamais tive, de me expor para eles. Deixei muito claro o quanto isso me emocionou e me deixou satisfeito e orgulhoso de tê-los como meus pais. 

E foi assim que eu eu fui expulso do meu armário. 

No iPod, Evolution canta meu tema com Vapes: "Walking on Fire".